• 19 jul 2016

    Violência contra a mulher

A luta consequente para acabar com a violência sobre a mulher depende do programa de emancipação e igualdade

Não dá para esconder que as mulheres ocupam uma posição de desigualdade em relação ao homem. A não ser a direita burguesa obscurantista, há, ainda que em palavras, da parte de setores da política burguesa, o reconhecimento dessa constatação. O que, porém, precisa ser esclarecido é que tanto aqueles que admitem a existência da desigualdade quanto os que a consideram natural ocultam a sua raiz.

Faz parte do senso comum que não se pode acabar com a desigualdade sem erradicar as causas. Há inclusive um ditado popular que diz: “não se pode acabar com a febre sem atacar a infecção”. Por mais clara que seja essa conclusão, no entanto, tudo se faz para não a evidenciar no caso da discriminação da mulher. Nisto estão unidos reacionários e progressistas burgueses e pequeno-burgueses. É bem provável que haverá quem diga que há mais de uma causa e explicação. Essa questão ressurgiu diante do estupro coletivo da jovem de 16 anos no Rio de Janeiro.

Violência contra a mulher

O estupro é considerado um dos atos mais terríveis de agressão à mulher. Trata-se da violação de sua sexualidade, sentimento e psicologia. Ao seu lado, estão os assassinatos, espancamentos, qualificações morais, humilhações e tráfico de menores. Acrescenta-se o aborto clandestino que causa grandes danos à saúde física e mental, em razão da privação do direito de interrupção da gravidez. Essas manifestações se enfeixam e constituem a prova do quanto a mulher padece com a desigualdade e o quanto é socialmente vulnerável.

Bastaria essa carga de agressões e privações para colocar na ordem do dia a tarefa de acabar com a desigualdade. No entanto, a situação da mulher é ainda mais calamitosa. Arca com diferenciações na família e no trabalho. A dupla jornada de trabalho – isso se não estiver reduzida à condição de simples dona de casa – a esmaga no dia-a-dia. Os salários são menores que os recebidos pelos homens. Têm a seu encargo a maternidade, que devem levar adiante nestas duras condições. Não há proteção a essa função natural de progenitora, uma vez que a maternidade não é assumida como função social.

A ocorrência de um desses fatos é suficiente para que todos os demais venham à tona. Não é possível desvincular, portanto, o estupro das condições gerais de opressão vivida no dia-a-dia. Pela mesma razão, não se chega à real situação da desigualdade apenas por um dos fardos que a mulher carrega. No plano da política e da ideologia burguesa, no entanto, o estupro é encarado como se não tivesse nada a ver com a dupla jornada, com as diferenciações salariais, etc.

A separação e o tratamento isolado das múltiplas formas de violência sofrida pela mulher não permitem revelar a raiz comum. A denúncia e a luta diante de casos particulares – como o do estupro coletivo –, certamente, devem ser travadas como reação imediata ao fato. Para que sirvam ao movimento de emancipação e igualdade é necessário que exponham as causas, expressem o programa revolucionário e rechacem as falsificações burguesas.

O que dizem os números

As estatísticas fora dos acontecimentos parecem números frios, apesar de aterradores. Abundam estudos e comprovações de que as agressões, assassinatos e estupros são rotineiros, cuja grande incidência atesta o quanto a mulher continua à mercê do homem. Diante de acontecimentos como o do estupro coletivo, as estatísticas ganham vida, exigem explicações das autoridades, mobilizam as organizações feministas, animam os tais dos especialistas a apresentarem teorias e soluções e ensejam as igrejas a professarem sua doutrina.

Ao lado da discussão sobre a que ponto chegou a violência contra a jovem de 16 anos, os comentários jornalísticos mostraram que, segundo o SUS, 147.691 casos de violência sexual e física foram registrados – uma média de 405 por dia ou um a cada quatro minutos; no caso de estupro, uma ocorrência a cada 11 minutos (cerca de 50 mil por ano). Esses números são considerados muito parciais, uma vez que grande parte das agressões não é notificada pela vítima.

Estima-se que algum tipo de violência sexual atinja mais de meio milhão de mulheres, sendo que apenas 10% são registrados. O principal agressor é o marido, respondendo por 22,5%. Somente 13% são atribuídos a estranhos. O restante das ocorrências cabe a homens próximos da vítima (padrasto, namorado, ex-namorado e irmão). Observa-se que 8,1% das graves agressões físicas são praticados pela mãe. Número significativo por estar pouco abaixo do irmão e muito acima do padrasto, do namorado e ex-namorado. Esses números são ainda mais aterradores: 71% dos estupros atingem as faixas de até 12 anos e de 13 a 19 anos. Grande parte ocorre no interior da família e nos círculos mais próximos das vítimas. É sintomático que mais de 50% dos assassinatos são praticados por familiares.

O fato de a família abrigar o maior número de violência física, psicológica, moral, sexual e de cárcere privado não é por acaso. Ainda que não se tenha grande precisão estatística, está claro que a opressão sobre a mulher começa na família. Via de regra essa constatação é tomada como simples referência. Pontualmente, consideram-se como principais motivos da violência o alcoolismo e o ciúme. As causas fundamentais da desigualdade e da subordinação da mulher na família são desconhecidas ou ocultadas.

Prisioneira da família

A base da discriminação e da degradação da mulher se encontra justamente na sua capacidade produtiva. A família como unidade econômica da sociedade de classes, – no caso, o capitalismo – estabelece os laços de dominação e de subordinação ao homem. Não por acaso, os constrangimentos e o uso da força bruta sobre a mulher começam na família, irradiam-se para a vizinhança e se espraiam no desconhecido.

As sociedades de classes – o capitalismo apenas deu continuidade e fez adaptações – estabeleceu uma divisão social do trabalho que escravizou a mulher na família, atribuindo-lhe as tarefas da economia do lar. Nessa relação, foi subordinada ao homem. A sua capacidade produtiva, criadora e organizadora sofreu, assim, um grande atraso. O fato de o capitalismo ter modificado a situação da mulher incorporando-a na produção não eliminou a divisão social no seio da família, a desigualdade e a sua inferiorização.

As consequências revelam outros aspectos da desigualdade que extrapolam a situação da mulher na família. Os capitalistas exploram as massas femininas como força de trabalho inferiorizada: pagam-lhes salários menores, discriminam-nas pela faculdade da maternidade e impõem-lhes dura jornada de trabalho. Como é de conhecimento corriqueiro, em casa continua a trabalhar, presa que está à divisão capitalista do trabalho. Está aí por que a mulher que arca com o maior peso da opressão pertence à classe operária, às camadas da classe média arruinada e aos camponeses pobres. A família como unidade econômica a mantém subordinada às tarefas internas e serve à dupla exploração, reconhecidamente como dupla jornada de trabalho.

Essa estrutura socioeconômica é fonte e espaço por onde se manifesta e perpassa a violência sobre a mulher. Os dados estatísticos acima expostos testemunham essa constatação. Começando o reconhecimento do fenômeno pela base econômica e social se encontra a raiz de classe da exploração e da opressão sobre a mulher. Torna-se possível compreender por que a maior parte dos assassinatos, estupros, espancamentos, humilhações psicológicas e morais se dá dentro do microcosmo familiar. A violência fora desse âmbito é uma extensão social, que conta com a contribuição de outras determinações.

Reação do Estado

O estupro no Rio de Janeiro ganhou publicidade inédita. A jovem de 16 anos, que teve um filho com apenas 13 anos, relatou que foi violentada por três dezenas de homens. Uma cena se espalhou pelas redes sociais. A brutalidade e a estupidez do estupro coletivo obrigaram o Estado a responder, por meio do governo federal, do estado do Rio e do Congresso Nacional. A imprensa armou uma grande discussão na forma de campanha. A repercussão internacional reforçou a obrigação das autoridades de se pronunciarem e apresentarem soluções.

Sob a crítica da impunidade e da “cultura do estupro”, o delegado Alessandro Thiers perdeu a condução do caso, que foi transferido para a titular da Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (DECAV), Cristina Onorato Bento. O Secretário de Segurança Pública do Rio garantiu que “aqueles que praticaram esse crime hediondo serão achados, presos e condenados. ” O governador do Rio em exercício, Francisco Dornelles, declarou-se favorável à pena de morte. Michel Temer, presidente golpista, correu a lamentar e a oferecer toda ajuda policial necessária. O seu ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, anunciou a intenção de mandar ao Congresso Nacional uma Lei Complementar que agrava o cumprimento da pena a todos os tipos de crime. Em caráter de urgência, o Senado aprovou o projeto de lei apresentado pela senadora pelo PCdoB, Vanessa Graziottin, que aumenta a pena para o caso de estupro coletivo. A senadora pelo PMDB, Simone Tabet, fez uma emenda que coíbe divulgação na internet. Criou-se um “núcleo federal de enfrentamento à violência de gênero”. Os estados e municípios, de agora em diante, deverão enviar as notificações de casos para um banco de dados federal. Segundo o ministro da Justiça, trata-se de “redimensionar o policiamento preventivo e ostensivo”. Prometeu também que as delegacias especializadas devem ter o mesmo “protocolo de atendimento”, uma forma de não culpabilizar a vítima e de ter um igual tratamento dos casos em todo o País.

O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, aproveitou a ocasião para mostrar que no estado houve uma queda de 2,59% das notificações em um ano (maio de 2015 a abril de 2016). Mas, de janeiro a abril de 2016, foram registrados 3.242 estupros, sendo que no mesmo período de 2015 foram 3.164 notificações. O objetivo do governador foi o de dar a entender que, com 132 delegacias da mulher, o estado de São Paulo é um exemplo de proteção.

Vemos que as forças que comandam o Estado procuraram se livrar da acusação de que a impunidade é uma das causas fundamentais da violência contra a mulher. Temer foi criticado por constituir um corpo ministerial apenas com homens, colocar na nova Secretaria de Política para Mulheres a reacionária Fátima Palaes (PMDB) e desmontar o ministério que cuidava das questões de “gênero”. A desigualdade, a discriminação e o volume dos casos de violência contra a mulher impõem-se diante da política burguesa. Obrigatoriamente, os partidos, governos e instituições se veem diante da necessidade de responder. Os choques de visão e de proposição se refletem no Congresso Nacional, na imprensa, nos meios culturais, etc. A Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, consideradas avançadas, de repente se tornam insuficientes diante dos casos de estupros coletivos. Então o Congresso Nacional decide tipificar mais rigorosamente e impor uma pena mais dura aos agressores. Trava-se, assim, toda uma discussão sobre a impunidade e a obrigatoriedade do Estado de reprimir o crime e proteger as mulheres, como via de solução.

Cultura do estupro

O presidente da Comissão de Direito Penal da OAB, Renato de Mello Jorge Silveira, não viu com bons olhos a nova tipificação dada pelo Senado e a intenção do ministro da Justiça de agravar a pena. Diz: “Não é aumentando a pena que se reprime um crime. Se nossos sistemas policiais fossem efetivos, a certeza da punição teria efeito maior”. Em resumo, o problema não estaria na falta de leis, mas na sua execução.

A promotora Silvia Chakian, que lida com a violência doméstica, se pronunciou na mesma linha: “A situação só vai mudar quando quem pratica violência tiver a certeza de que será punido de maneira severa e justa”. Acredita-se que com a efetiva aplicação judicial e policial das leis já existentes se criará uma consciência sobre a existência de um sistema punitivo que protege as mulheres e o temor preventivo nos homens tendentes à violência.

Há quem ache que a referida impunidade se deve a uma “cultura do estupro” ou, no sentido mais geral, à cultura da “violência contra a mulher”. O jornalista Vicente Vilargada, em seu artigo “O caso Abdelmassih e a cultura do estupro”, descreve assim: “O mecanismo geral de proteção do homem é simples: muitos machos locais estão acostumados a se impor pelo assédio, em maior ou menor grau, e, quando acontece uma crise e algum comportamento extremo vem à tona, um macho protege o outro e não deixa o crime vazar, faz que não viu, minimiza o ato ou transfere a culpa para a vítima. ” A “cultura do estupro”, para Vilargada, tem dupla face: de um lado, está assentado em que a vítima dá motivo para ser atacada; de outro, “muitas denúncias não prosperam porque os machos possuem um código de honra em que impera a hipocrisia e o silêncio. ” A crítica à “cultura do estupro” vem no sentido de enfrentar a “manifestação mais elementar da barbárie” com “tolerância zero”.

Marcelo Freixo, conhecido militante do PSol, entende que a “cultura do estupro” se manifesta na declaração do deputado Bolsonaro de que não estuprava a deputada Maria do Rosário porque esta não merecia; na atitude conivente do prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes com o pré-candidato Pedro Paulo Carvalho que agrediu sua ex-mulher; no “rebaixamento das Secretarias da Mulher, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos”, que passou a ser controlada pelo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes; no projeto de lei 5060/13, que obriga a vítima de estupro a registrar o boletim de ocorrência e passar pelo exame de corpo de delito antes de ser atendida numa unidade de saúde; e no recebimento de Alexandre Frota, que defende a proibição da discussão sobre “identidade de gênero” nas escolas, pelo ministro da Educação, Mendonça Filho. Em síntese: “Diante de episódios tão reveladores do espírito patriarcal brasileiro, não surpreende que falar de cultura do estupro e a importância do feminismo na construção de uma sociedade justa incomode mais do que o fato de uma mulher ser violentada a cada 11 minutos.” As denúncias de Freixo são precisas, demonstram nos fatos a posição reacionária de representantes da burguesia no Estado. Mas não explica de onde vem a “cultura do estupro” e o “espírito patriarcal brasileiro”. O reformismo pequeno-burguês tem a crítica cultural como um dos pilares de sua política.

A professora de antropologia e coordenadora do programa “USP Diversidade”, Heloísa Buarque de Almeida, explica que há uma naturalização da “cultura do estupro”. Adentra à crítica à “produção cultural que por um lado naturaliza a desigualdade entre homens e mulheres e por outro torna as mulheres objetos”. Recorre também à constatação de que “vivemos numa sociedade que nutre a ideia que se uma menina denuncia um estupro, a primeira coisa que acontece é cair a culpa sobre ela”. Está de acordo que a primeira medida é a punição. Mas ressalva que “não basta punir”, é preciso educar, “é urgente falar de gênero na escola”, “educar os meninos a serem amigos das meninas”.

A articulista Rosely Sayão se manifestou nesta mesma linha em “A questão de gênero na escola”. Exorta: “Você quer que sua filha ou que seu filho seja cidadão de bem? Exija que a escola elabore um projeto de abordagem das questões de gênero e que discuta com a comunidade. Há muito material bom já elaborado para tratar desse tema na escola. ”

De fato, não faltam estudos acadêmicos sobre discriminação e violência sobre as mulheres, voltados a provar de que se trata de encarar a problemática do “gênero” do ponto de vista da educação combinada com a prevenção e punição. No plano político, trava-se um embate do movimento feminista e LGBT por dotar a escola de educação para a igualdade de “gênero” e superação do “machismo”. Nas últimas décadas, cresceu a pressão no Congresso Nacional e sobre os governos para que abram a escola para a educação de gênero. O que desencadeou ações contrárias, partindo principalmente das igrejas que não admitem nem a discussão, nem a adoção do direito ao aborto, entre outras questões sexuais, morais e de saúde pública, que envolvem discriminações. Em Uberaba, a Câmara Municipal aprovou uma emenda na Lei Orgânica, que proíbe as “discussões de ideologias de gênero nas escolas. ” O evangélico e vereador Samuel Pereira divulgou uma cartilha em seu apoio – uma espécie de cruzada contra a ideologia de gênero.

Resposta da Igreja

A informação é a de que a igreja católica apoiou a iniciativa de Uberaba. Nota-se que a defesa da “educação de gênero na escola” se tornou um campo de discussão ideológica. A posição mais representativa foi elaborada por Dom Odilo P. Scherer.

O cardeal procura mostrar que a “crítica aos comportamentos machistas”, a denúncia à “cultura do estupro” e “o apelo à sua superação” não são “sem razão”, mas não chegam ao essencial “da cultura do respeito à pessoa humana e à sua dignidade, respeito ao seu corpo e sua alma”. Diz que não será com mais leis repressivas e cadeia que se superará a violência. É preciso a educação, mas não a que está sendo proposta. Falta-lhe a base moral. E essa é uma tarefa da família, como abordou o papa Francisco na sua “Exortação Apostólica Amoris Laetitia, sobre o amor na família. ” O que quer dizer subordinar a “educação de gênero” à religião.

Evidentemente, não há nada de novo nessa investida da Igreja. O que chama a atenção é o fato de Dom Odilo ter assumido o conceito de machismo e procurar aplicá-lo em sua contestação àqueles que procuram uma educação sexual baseada no “foco restrito à prevenção das doenças sexualmente transmissíveis e do ‘risco’ da gravidez indesejada (como se fosse doença também)”. Retruca: “A justa preocupação com a prevenção de doenças, quando unilateral, poderia passar a ideia de que ‘usando preservativo, o resto pode tudo’, dando um aval implícito para atitudes machistas e atos sexuais irresponsáveis”. No fundo, defende a doutrina da Igreja contra o aborto, os preservativos e o casamento e família de homossexuais. Está de acordo em que há uma cultura machista e de estupro, mas que deve ser tratada do ponto de vista da moral, cujo conteúdo é dado pela religião.

Não há dúvida de que se em algum momento o movimento feminista, ONGs e LGBT conseguirem que se introduza a “educação de gênero” nas escolas, a religião estará presente. É claro que somente a experiência poderá confirmar nossa certeza.

“Machismo mata”

Uma das bandeiras levantadas nas manifestações foi “Machismo mata”. A tarefa, portanto, é combater essa praga com pronta punição, prevenção e educação. Na base da “cultura do estupro”, se encontra o machismo. Uma nova cultura, que não se sabe bem o que é, se encarregaria de formar novas gerações assentadas na igualdade.

Advoga-se que seria a libertária cultura de gênero. Há que se acabar com um valor caro ao “machismo” que é a demonstração da virilidade, da posse e da tomada da mulher como objeto de desejo. Estaria colocado, portanto, o desmonte do patriarcalismo. Uma grande transformação cultural e educacional levaria ao fim do reinado do macho e à igualdade de gênero. Nota-se que a generalização adjetivada reduz a subordinação da mulher e as consequências daí advindas à sexualidade. A nova cultura, portanto, tem por missão superar o poder do macho. Por se tratar de um campo de especulação, outras versões podem se manifestar.

A bandeira “Machismo mata” é sintomática. A violência sofrida pelas mulheres e homossexuais seria consequência de uma sociedade baseada no poder sexual do macho. Ao qual corresponde uma ideologia e uma cultura machistas, que devem ser superadas pela educação. A esquerda tem adaptado a “pseudoteoria do gênero” e do “machismo” – confeccionada na academia – ao objetivo histórico do socialismo. O que não muda o fundo especulativo de tais formulações acadêmicas, que servem ao feminismo burguês e pequeno-burguês da atualidade, diga-se, em escala mundial. A raiz e as causas fundamentais de toda sorte de violência contra a mulher não estão na prepotência de raiz cultural do homem e na longa tradição de suposto “sexo forte”, mas nas relações econômicas e sociais da sociedade de classes, no caso a capitalista.

Superar o patriarcalismo

Qualquer que seja a cultura corresponde às relações econômicas e sociais. O fato desta fazer parte da conservação e da transformação histórica, expressando a ação e criação do homem, alcançando uma certa independência, não significa que não seja reflexo e que não esteja condicionada pela correspondente base material. Em última instância, a situação concreta de como a riqueza é produzida e distribuída determina a produção da cultura, o seu desenvolvimento e regressão.

No caso em questão, é verificável que a mulher violentada expõe o temor de ser responsabilizada. Uma das perguntas do delegado Alessandro Tihers à jovem estuprada foi se ela praticava sexo coletivo. E sua linha de investigação considerava sua ligação com o narcotráfico. É comum atribuir ao comportamento da vítima a causa da violência. Essa mentalidade está disseminada na população. Os aparatos judiciais e policiais reproduzem e reforçam uma falsa imagem do fenômeno da violência sobre a mulher e a violência em geral. Como não poderia deixar de ser, assim é concebida no Congresso Nacional, apesar das divergências e das contundentes polêmicas. Lembremos o gesto do deputado Jean Wyllys de cuspir no reacionário Jair Bolsonaro.

O problema fundamental da tese feminista sobre a “cultura da violência e do estupro” está em que a desvincula de sua base material e procura a solução na constituição de uma nova cultura por meio da educação. Pretende acabar com a mentalidade patriarcal dominante por uma cultura em que a mulher deixa de ser objeto de prazer do homem. A denúncia concreta acaba servindo à impostura da transformação do poder do homem por meio da educação. Sequer se dá o cuidado de reconhecer que a relação patriarcal é produto histórico da sociedade de classes. Os valores e cultura patriarcais são criações da classe dominante, segundo a formação social vigente.

O patriarcalismo sucedeu ao matriarcado, que vigorava no comunismo primitivo. O que quer dizer que nem sempre a mulher esteve em posição subordinada ao homem. Em outras palavras, somente com a divisão do trabalho baseada na propriedade privada dos meios de produção se consolidou e se desenvolveu o patriarcado. No Brasil, o sistema colonial escravista, na sua forma pré-capitalista, trouxe consigo o patriarcado, totalmente desconhecido e avesso ao comunismo primitivo dos indígenas. É bem conhecido o drama dos escravos e em particular da mulher negra. Mas em geral a mulher sofreu um tremendo atraso por sua condição de dona de casa. Conquistas elementares foram sendo atendidas gradualmente conforme o avanço das forças produtivas e a necessidade do capitalismo de incorporar as massas femininas na produção.

Observam-se mudanças nas condições de existência da mulher e no seu peso social na passagem do pré-capitalismo para o capitalismo e nas várias etapas de sua evolução geral. No entanto, a mulher continua sofrendo a divisão social do trabalho que a tornou prisioneira da família. Mudou a forma do patriarcalismo, mas sua essência se manteve. E será mantida enquanto o capitalismo sobreviver. Não é possível superar a mentalidade atrasada, conservadora e reacionária sobre a inferioridade da mulher por meio da educação, sob as condições normais da dominação de classe. Uma nova educação que eleve a consciência social de homens e mulheres será gestada no processo revolucionário de derrocada do capitalismo e construção do socialismo.

O patriarcalismo ou o que resta de seus vestígios cairão e ficarão para trás com a transformação da propriedade privada dos meios de produção em propriedade social. Mulheres e homens serão iguais no processo de criação de riqueza, reprodução da vida e organização da vida social. O trabalho doméstico passará a ser social. A família deixará de ser parte da economia privada e expressão da divisão das classes. A mulher se tornou escrava do lar e objeto de satisfação justamente quando o homem se encarregou dos meios de produção na forma privada e a antiga família foi transformada em unidade econômica da sociedade de classes. Há um vínculo indissolúvel entre um e outro.

O capitalismo elevou às alturas a mercantilização das relações familiares e o corpo da mulher como mercadoria. A escravidão doméstica da mulher está em sua base. O alto desenvolvimento das forças produtivas e a incorporação massiva das mulheres na indústria, comércio, serviços, etc. se choca com a estrutura familiar de economia privada. Em grande parte, essas contradições explicam, em última instância, a persistência e reprodução da violência sofrida pelas mulheres. É necessário resolvê-las historicamente, por meio da revolução proletária, socialista.

Capitalismo em decomposição

Há um justo inconformismo diante de tamanha violência contra a mulher no sentido de que é incompreensível que no século XXI continua existindo e se agravando. Foi corretamente qualificado de barbárie o estupro coletivo. Vieram à memória o caso do Piauí em que as vítimas foram jogadas em um despenhadeiro e muitos casos escabrosos de pais que violam crianças. O estupro coletivo na Índia, seguido do assassinato da jovem, por ter tido repercussão mundial não poderia faltar como comparação com o que se passou no Morro do Barão, zona oeste do Rio de Janeiro.

A indignação, porém, não deve servir para ocultar a fonte da barbárie. Agrava-se a condição de opressão sobre a mulher no capitalismo em decomposição. É o que não querem admitir o feminismo e as esquerdas presas à pseudoteoria do gênero e do machismo. A própria máscara da “cultura do estupro”, que oculta as causas determinantes da violência, advém do impasse e da incapacidade da política burguesa de responder e resolver a opressão sobre a mulher ou qualquer outra forma de opressão, justamente por serem de classe.

Está à vista que recrudesce a violência em geral. Coloquemos o estupro coletivo da jovem e o assassinato pela polícia de um menino de 10 anos que furtava um carro, quase que concomitantemente, e temos uma dimensão mais clara do que vem a ser a barbárie. Comparemos a postura do delegado Thiers diante do estupro coletivo e da instituição policial diante do assassinato do menino e teremos de analisar mais profundamente o fenômeno da barbárie social. Não são casos fortuitos e isolados. As estatísticas sobre a morte por homicídio também são aterradoras. A maioria é de jovens, homens, pobres e negros. Reunamos todos os aspectos da violência social e chegaremos à decomposição do capitalismo.

A burguesia não tem como acabar com o desemprego, o subemprego, os salários miseráveis, a degradação dos camponeses, as favelas e toda sorte de penúria social, embora o capitalismo tenha atingido alta capacidade produtiva e gigantesco acúmulo de riqueza. As massas foram poderosamente submetidas por uma minoria burguesa que rege o destino do mundo. A grande maioria das nações atrasadas está obrigada a sustentar as potências decadentes e ferozes. A anarquia da produção social se converte em anarquia da vida social (aumento exponencial de todo tipo de violência, desintegração familiar, patologias e degeneração da humanidade, que inclui a regressão cultural).

A luta séria e consequente impõe que os explorados respondam a cada manifestação concreta da barbárie, mas sem separá-la do conjunto. O que é possível se responderem ao programa estratégico do proletariado de transformar a propriedade privada dos meios de produção em propriedade socialista. Não se combate a barbárie capitalista sem ir à sua fonte primeira. Nenhuma reforma significativa e duradoura poderá ser realizada pela burguesia. A época de reformas progressivas do capitalismo ficou para trás ao adentrar a sua fase superior e última que é a do imperialismo.

Somente o proletariado pode acabar com a opressão sobre a mulher

O marxismo não apenas formulou princípios, fundamentos e o programa de emancipação da mulher. Sempre deu enorme importância à luta pela igualdade. A Revolução Russa, no período anterior à revisão estalinista, pôs em marcha à incorporação da mulher na produção social, estabeleceu a legislação mais avançada que se tem e abriu caminho para a libertação da mulher russa dos grilhões da família herdada da servidão e do capitalismo.

A concepção marxista se assenta na demonstração que a situação da mulher se manifesta como um problema de classe e será resolvido pela luta de classes. Evidentemente, contrapõem- se ao reformismo burguês e pequeno-burguês, que como tal deformam e ocultam o caráter de classe da opressão.

A moda do presente é a pseudoteoria do “gênero” e do “machismo”, acrescida da pseudoteoria da “cultura do estupro” e “cultura da violência”, que aparenta ser uma crítica radical à desigualdade. No passado, o movimento feminista burguês chegou a um beco sem saída, o mesmo acontecerá como o de nossos dias. O obstáculo fundamental para que já não tenha se esgotado está em que a classe operária sofreu um grande retrocesso político-organizativo com a estalinização e com o processo de restauração capitalista em andamento na ex-URSS, China, Leste Europeu e Cuba. Isso explica a atração de tais novidades para as esquerdas revisionistas, que procuram adaptar o marxismo ao reformismo, assumido por setores da classe média.

Há que se trabalhar no sentido contrário, na defesa da concepção e do programa de emancipação e igualdade das mulheres. As reivindicações que emergem da opressão devem servir de ponto de partida para a luta estratégica de destruição do capitalismo pela revolução proletária. No momento em que as mulheres exploradas, principalmente as proletárias, se colocarem pela defesa de sua total incorporação na produção social, o que implica o fim do desemprego, abolição de toda diferenciação salarial, o que implica trabalho igual salário igual, reconhecimento da maternidade como função social, o que implica proteção geral à maternidade, superação de sua condição de dona de casa, o que implica restaurantes, lavanderia, creches coletivas, será dado um salto na luta contra toda forma de violência, inclusive o estupro; será dado um passo decisivo na organização das mulheres na luta de todos os explorados; será dada uma mudança qualitativa na consciência dos homens que vivem na carne a exploração e a opressão capitalista sobre a igualdade da mulher e seu papel criador na sociedade.