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13 dez 2020
Abaixo a disputa da vacina!
12 de dezembro de 2020
A classe operária e demais explorados devem exigir o fim imediato da concorrência capitalista em torno das diversas vacinas. Os laboratórios têm interesse financeiro na utilização de um dos meios mais esperados de contenção da pandemia. Um punhado de países, que os sedia e controla o monopólio do conhecimento científico, desencadeou uma guerra comercial, para impor a vacina à maioria dos países, completamente desprotegidos e incapazes de fazer frente ao avanço do coronavírus com suas próprias forças.
A disputa pela vacina é parte da guerra comercial geral, que se vem agravando, desde a eclosão da crise mundial de 2008. Os Estados Unidos, sob o governo de Donald Trump, decretaram estado de guerra comercial, tendo a China como principal alvo. A superprodução mundial e a tendência à queda da taxa média de lucro dos monopólios vêm opondo um país aos outros, e todos contra todos. As potências encarnam e impulsionam medidas protecionistas e concorrenciais, objetivando se defenderem da crise, que desintegra o capitalismo e agiganta a barbárie social. Como é inevitável a destruição de parte das forças produtivas mundiais, que resulta em quebra econômica, aumento exponencial do desemprego e avanço da miséria, as potências agem no sentido de se livrarem do pior da crise, descarregando-a sobre a imensa maioria dos países, economicamente atrasados e incapazes de responderem à guerra comercial.
O imperialismo norte-americano se aproveitou dos impasses econômicos da China, para, nos anos de 1970, obrigar a burocracia do Partido Comunista a baixar as fronteiras do país à maciça penetração das multinacionais. Abriu-se caminho para o avanço da restauração capitalista, que tomaria conta da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e do Leste Europeu. O amplo movimento de destruição das conquistas socialistas do proletariado, e de triunfo das forças de restauração do capitalismo, se esgotou em pouco mais de três décadas. A China, que se ergueu como potência econômica, com a invasão das multinacionais em sua economia, e com a imersão no mercado mundial, regida por um poderoso capitalismo de Estado, passou de instrumento da política norte-americana à condição de um dos mais potentes rivais. A restauração capitalista, que se acelerou no quadro da retomada da crise mundial do pós-guerra, serviu de amortecedor da contradição entre as forças produtivas e as relações de produção. Esgotado, o processo se transformou em seu contrário, potenciando a crise de superprodução e a guerra comercial.
Da China, por ventura, o vírus Covid-19 se espalhou ao mundo. Trump procurou responsabilizá-la, e exigir da Organização Mundial da Saúde (OMS) um posicionamento, alinhado aos Estados Unidos. A potência se valia da pandemia para fortalecer a guerra comercial com a China. O alinhamento se inviabilizou, na medida em que o governo norte-americano assumiu um curso distinto das potências europeias no enfrentamento à pandemia, que seguiram as diretrizes da OMS, baseadas no isolamento social. Sabia-se perfeitamente que, enquanto não houvesse um imunizante, as orientações dos infectologistas eram circunstanciais, limitadas e incapazes de vencer a marcha da contaminação e das mortes. É o que se passou. O isolamento social, como prática científica, esteve a cargo da política ou políticas burguesas. Evidenciou que, antes de tudo, a pandemia se convertia em um problema de classe, embora atingisse indistintamente exploradores e explorados, classe média e classe operária, ricos e pobres. A incidência da doença e mortandade recaiam sobre as massas desprotegidas.
Nesses longos meses de pandemia, ficou patente que a imunização natural não teria como conter o vírus no curto prazo, e reduzir o alto índice de óbitos. A imensa vastidão da pobreza e miséria foi o principal indutor da proliferação e resistência do vírus letal. Por mais rigoroso que fosse o isolamento social, sua eficácia se anulava, diante das necessidades dos explorados, da inviabilidade dos governos burgueses de protegê-los, como um todo, e dos interesses do poder econômico.
No horizonte, restava apenas a busca dos laboratórios pela vacina. A urgência e a necessidade de vida ou morte estavame estiveram, porém, condicionadas aos objetivos econômicos e aos conflitos entre as potências, principalmente entre Estados Unidos e China. A ciência, a tecnologia e a indústria, sob a forma de capital, são guiadas pelo lucro. E o lucro opõe as multinacionais, países e governos entre si, especialmente nas condições de agravamento da guerra comercial. As massas exploradas não têm outra saída, senão aguardar o resultado da disputa de interesses, que ocorre nas entranhas da burguesia mundial. Isso por que a classe operária se encontra desorganizada e submetida às variantes da política burguesa. No Brasil, a cisão entre o governo federal e os governadores, que se alinharam com o estado de São Paulo na defesa das diretrizes da OMS, refletiu as distintas orientações que se manifestaram no plano mundial.
Foi notório o alinhamento do presidente Bolsonaro com Trump. O governador de São Paulo, João Doria, liderou, desde o início da pandemia, um movimento oposicionista, sob a bandeira do isolamento social. Diante da impossibilidade de manter esse recurso ao longo do tempo, presidente e governadores chegaram ao denominador comum de que era preciso flexibilizar e voltar à normalidade econômica. O país aproxima-se, nesse momento, dos 200 mil mortos, sendo a grande maioria de pobres e miseráveis, que sequer contaram com as condições necessárias da saúde pública. Bolsonaro fez, em junho, um acordo com a farmacêutica AstraZeneca-Oxford de compra da vacina, encarregando a Fiocruz de viabilizá-lo. Essa preferência implicava excluir outras vacinas, que também estavam em estado avançado de testes. Doria, por outro lado, estabeleceu um convênio com a vacina do laboratório Sinovac, proveniente da China, encarregando o Instituto Butantan de produzi-la. O estado do Paraná mostrou interesse na vacina Sputnik 5, da Rússia.
O conflito político em torno à vacina não foi senão um desdobramento das divergências iniciais. É certo que a dissenção entre Bolsonaro e Doria tem a ver com a futura eleição presidencial. No entanto, os interesses eleitorais são tão somente parte de um problema maior. O clã dos Bolsonaros envolveu a decisão do governador de São Paulo a posições ideológicas. A China seria responsável pela pandemia, como havia denunciado Trump, e havia interesses de “comunistas” por trás da vacina. Embora se tratasse de uma imbecilidade, revelou a resistência do presidente em aceitar a vacina Coronavac, como parte do Plano Nacional de Imunização (PNI). O acordo com a AstraZeneca pressupunha o monopólio ditado pelo governo federal, o qual os estados e municípios teriam de acatar. O problema não parava por aí. Bolsonaro, na condição de adepto dos evangélicos, é contra a vacinação. Evidentemente, não poderia ser consequente com a insanidade religiosa, ao ponto de negar terminantemente a vacinação. Está aí por que a torna voluntária, não-obrigatória. Essa é a mesma atitude política da Inglaterra, que sedia a AstraZeneca. De um lado, Bolsonaro atendeu aos interesses de um dos laboratórios, de outro, a resistência dos evangélicos à vacinação. O conflito ideológico em torno à vacina, como se vê, envolve, não apenas as imbecilidades quanto à origem “comunista” da vacina, como também aos desígnios da religião.
Estabelecidas as duas linhas de força – Bolsonaro/AstraZeneca e Doria/Sinovac –, sobreveio um problema nos testes da AstraZeneca. O que colocou a vacina inglesa em condições concorrenciais inferiores à vacina chinesa. Um acidente de percurso com um dos voluntários aos testes da Coronavac, que nada tinha a ver com a vacina, foi utilizado pelos agentes de Bolsonaro na Anvisa, para interromper o processo de testagem. Instalou-se uma crise política, envolvendo a Agência responsável pela liberação das vacinas. Os bolsonaristas procuraram comprometer, sem nenhum fundamento, a qualidade científica do laboratório chinês.
O embate do governo federal com a posição do governador de São Paulo foi ao fundo do pântano. A China é o maior importador de commodities do Brasil. Boa parte dessas exportações cabe ao estado de São Paulo. Setores da burguesia – da agroindústria e de exportadores – intervieram no sentido de não criar uma contenda exterior com a China, que reagiu veementemente, em termos diplomáticos, às injúrias do clã de Bolsonaro. Nota-se o quanto a Anvisa, a Fiocruz e o Butantan se submeteram ao fogo cruzado dos governantes, quando o país se encontrava e se encontra em situação de calamidade emergencial.
Por baixo dessa rinha, a pandemia mantinha seus altos índices de contaminação e mortes. Os explorados continuaram como as principais vítimas da doença, do desemprego, do rebaixamento salarial, da perda de direitos, e da incapacidade da burguesia de resolver a crise sanitária. Está claro que a guerra comercial, envolvida em uma nuvem de fumaça ideológica, era importada pelo Brasil do exterior. Não tinha a ver com as necessidades reais do país. Eis que a vacina da Pfizer/BioNTech – norte-americana e alemã – ganhou terreno. O governo inglês pôs de lado a vacina AstraZeneca e agilizou a adoção da Pfizer, iniciando a vacinação, em 8 de dezembro. A Agência de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA) autorizou o uso da vacina da Pfizer. E o governo Bolsonaro, como uma obediente ovelha, correu a fazer um acordo de compra da vacina norte-americana. Diante dessa movimentação, Doria lançou uma manobra política, anunciando que o estado de São Paulo iniciaria sua vacinação em 25 de janeiro, contando com apoio de uma importante parcela de governadores e prefeitos. Deu ordem também ao início da fabricação nacional da Coronavac em escala. O governador não ocultou que se tratava de uma pressão sobre a Anvisa e o Ministério da Saúde, diante da virada de Bolsonaro para o lado da Pfizer. A guerra comercial havia se agudizado. Caso a Coronavac fosse preterida, os Estados Unidos e Bolsonaro seriam os vencedores. A solução intermediária se viabilizaria, caso o governo federal adquirisse todas as vacinas, cujas testagens fossem aprovadas pela Anvisa.
Tornou-se inadmissível a Bolsonaro, que seu rival cumprisse a promessa de iniciar a vacinação, independentemente da autorização da Anvisa e do Ministério da Saúde. Esteve nos cálculos de Doria a possibilidade de obter um visto positivo por agências reguladoras internacionais. Premido, Bolsonaro acionou o Ministério da Saúde a impor a centralização da imunização. Nenhum estado poderia tomar a frente, desrespeitando o Plano Nacional de Imunização. Em um clima de tensão política, envolvendo o velho problema do federalismo, da centralização autoritária e da descentralização democrática, foi anunciada por Bolsonaro a edição de uma Medida Provisória, que estabelece recursos para compra das vacinas. O ministro da Saúde, general Pazuello, indicou que o PNI contará com todas as vacinas.
É sintomático que Bolsonaro tenha soltado da coleira o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), para informar a intenção de requisitar as vacinas, no caso do estado de São Paulo decidir por um caminho próprio. O ataque acirrado de Caiado a Doria foi a forma encontrada para Bolsonaro permanecer por detrás da cortina. Chegou-se ao ponto de se afirmar que estava em curso uma ruptura no descumprimento da Constituição e do federalismo. É visível que se tratou de uma espuma cinzenta ao embate entre a direita e a ultradireita burguesas, em torno da crise sanitária e econômica. Mas, não deixa de indicar a presença do antigo conflito federativo, que volta e meia vem à tona, em determinadas condições da crise política. Tudo indica que a maior probabilidade é de que Bolsonaro e Doria cheguem a um denominador comum, como chegaram com a flexibilização do isolamento social.
O choque entre essas duas variantes da política burguesa vai até o ponto de não romperem no fundamental, que é a necessidade capitalista de descarregar a crise sobre a maioria oprimida. Durante toda a pandemia, a classe operária e demais trabalhadores foram mantidos na mais profunda passividade, como se nada tivessem a ver com as soluções impostas pelas forças burguesas em conflito. Na mais terrível situação de contaminação, mortes, diminuição dos salários, perda de empregos, destruição de direitos, implantação da reforma trabalhista, avanço da terceirização, e aumento da informalidade, é como se tudo isso combinado fosse inevitável, e uma provação que as massas tinham de passar. As contendas entre Bolsonaro e Doria serviram para desorientar os explorados, e ocultar as reais causas das medidas antioperárias e antipopulares. Acuadas, temerosas e confusas, as massas foram sendo envolvidas pelas crises sanitária e econômica, como se não pudessem reagir à camisa de força que a burguesia e seus governantes lhes impuseram.
A burocracia sindical – dos mais diversos matizes políticos – sujeitou as organizações do proletariado ao jogo e manobras, protagonizados por Bolsonaro e Doria. Comportaram-se como serviçais dos capitalistas, que passaram a aplicar a MP 936, a recorrer a acordos de demissão, e a expandir a formas precarizadas de contratação. Os sindicatos fecharam as portas, e os burocratas se valeram das “assembleias” virtuais, para colaborar descaradamente com o patronato. A classe operária, desarmada de suas assembleias reais, de sua democracia real, e de sua capacidade coletiva real, agora, assiste atônita a “guerra das vacinas”, a imposição ao país dos interesses dos abutres que controlam a indústria da saúde, a ciência e a tecnologia. É imprescindível denunciar o PT e PCdoB como responsáveis pelas ações da burocracia sindical. Os seguidistas do reformismo, PSOL e PSTU, não terão como escapar dessa responsabilidade.
A única resposta mais eficaz dos capitalistas e seus governos é a vacina. O isolamento social se mostrou limitado, fracassou e potenciou a crise econômica, que a burguesia vem descarregando sobre as massas. Está demonstrado que a imunização natural cai por terra nas condições de pobreza e miséria, que prevalecem em todo o mundo. Os organismos debilitados pela fome, pela exaustão e pelas comorbidades, que prevalecem entre os miseráveis, não têm como reagir naturalmente às endemias, epidemias e pandemias. As condições de defesa natural do organismo humano serão reconstituídas na sociedade sem classe, comunista, em que a pobreza, miséria e fome, provenientes da exploração do trabalho, serão definitivamente erradicadas. A ciência médica será auxiliar no enfrentamento aos fenômenos naturais, que vitimam os seres. O que os explorados contam no capitalismo é a vacina na forma de capital, de forma que sequer a OMS conseguiu uma ação comum internacional. Os países ricos já compraram centenas de milhões de unidades. Os países semipobres se endividarão ainda mais, e os muito pobres dependerão da ajuda “humanitária” da OMS. Uma grande operação comercial e financeira se processa por cima dos milhares de cadáveres, deixados pela pandemia.
Somente a superação da desorganização, da inércia e do pavor dos explorados poderá combater os interesses dos capitalistas, e exigir a vacina universal e gratuita. O programa que responde, consequentemente, ao capitalismo em decomposição e ao avanço da barbárie social é o da expropriação revolucionária da grande propriedade privada dos meios de produção e sua transformação em propriedade social. É na luta pelo poder, pela constituição de um governo operário e camponês, que se criam as condições da luta de classes, para viabilizar o programa de transformação do capitalismo em socialismo. Assim, se dará início à erradicação da pobreza, miséria e fome, semeeiros das doenças. Imediatamente, trata-se de pôr em pé um movimento pela recuperação dos postos de trabalho e dos salários; pela derrubada das contrarreformas e pela vacina universal e gratuita.