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22 jan 2023
Declaração do Comitê de Enlace pela Reconstrução da IV Internacional (CERQUI), 22 de janeiro de 2023
A rebelião popular no Peru é parte de um fenômeno internacional de levantes contra regimes que garantem o saque dos recursos dos países, sacrificam ainda mais os oprimidos cada vez mais empobrecidos e os reprimem brutalmente, se resistem. A agudização da crise econômica mundial vem acelerando o desgaste político de todos os governos burgueses latino-americanos.
Quando as massas ultrapassam com a sua intervenção as instituições, desafiam a legalidade e a repressão durante semanas, estão expondo uma nova etapa política, de incipientes caraterísticas revolucionárias.
A base de tais mobilizações foram as organizações comunitárias da população indígenas camponesas aymara e quechua. Basicamente, de suas assembleias saíram as decisões de bloquear as estradas e marchar para Lima, apesar da brutal repressão. E vem crescendo o movimento nacional de apoio aos povos andinos do sul. De todas as localidades, marcharam as delegações para a “tomada de Lima”.
As comunidades aymaras informaram que, enquanto seus paisanos estão em Lima, a greve por tempo indeterminado, com bloqueios das estradas, prosseguirá. Somente irão embora quando a presidenta renunciar e o Congresso for fechado.
Os oprimidos se organizam para enfrentar a maior violência policial e paramilitar em décadas, desenvolvem também suas próprias ações ofensivas sobre os edifícios públicos, aeroportos, organizam arrecadações de dinheiro e mantimentos para sustentar os que marcham. As medidas de ação direta se multiplicam em todo o país.
A Central Única Nacional de Rondas Camponesas convocou a realização de mobilizações e bloqueios de estradas.
Foi convocada a greve geral para a quinta feira 19 e de fato o país já estava praticamente paralisado semanas antes. A assembleia Nacional dos Povos (ANP) aprovou a greve nacional e mobilização, junto com a Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru. Na sede da CGTP, representantes das delegações das províncias reafirmaram a reivindicação de demissão da presidente e demandaram que não se mate mais ninguém.
A superintendência de Transportes Terrestres de Pessoas informava que o dia 19 havia 144 pontos bloqueados nas estradas nacionais de 19 regiões do país, devido a bloqueios humanos ou com pedras e paus que foram postos nas pistas. Centenas de caminhões ficaram bloqueados nas fronteiras.
Os jovens se somaram à mobilização: estudantes da Universidade Nacional San Antonio Abad (UNSAA) de Cusco, agrupados na Federação Universitária de Cusco e a Assembleia Regional de Cusco tomaram, de forma simbólica, o portão 3 da Universidade Nacional Maior de San Marcos. Grupos de estudantes que chegaram a Lima permaneceram nas instalações da Universidade Nacional de Engenharia (UNI). Dezenas de estudantes da Universidade Nacional do Altiplano saíram de Puno, e, na Capital, se uniram às outras universidades e ao bloco aymara.
O governo prolongou o estado e emergência em vários departamentos. Utilizou fartamente o gás lacrimogêneo, passaram a usar armas letais, helicópteros e aviões, e mobilizou o máximo de soldados. Há centenas de presos e feridos, além dos mais de 50 assassinados. O governo culpa a ingerência da Colômbia e Bolívia, o terrorismo e o narcotráfico, para tentar esconder que a base dos protestos está no empobrecimento generalizado da população diante do enriquecimento de uma minoria, o que provocou maior rejeição.
O conteúdo da mobilização é político. A consigna principal é a exigência que Dina Boluarte renuncie já. A sua proposta de antecipar eleições para 2024 foi rejeitada. E também é rejeitado o Congresso, controlado pela direita golpista. Exige-se a sua dissolução. As massas não querem que Boluarte seja substituída pelas autoridades do Congresso, pois seria o mesmo. Pedem a renúncia da mesa diretora do Congresso, presidida por José Williams. Uma parte dos manifestantes pede a volta do ex-presidente que foi destituído. Pede a liberdade de Castillo. Grande parte dos povos indígenas e camponeses se identifica com o presidente, que era um deles, um dirigente docente de origem camponesa que foi boicotado o tempo inteiro pela direita, que não aceitava a sua vitória eleitoral e apenas exerceu seu mandato por um ano e meio. Não se esgotou, politicamente, o fracasso do seu projeto, que reivindicava o “Socialismo do Século XXI”.
Como parte das reivindicações populares, aparece em alguns setores a proposta de Assembleia Constituinte, para revogar a Constituição deixada por Fujimori. Era parte da plataforma com que foi eleito Castillo, e seu último ato de governo foi a convocação para realizá-la em nove meses.
Todos os setores manifestam que não existe democracia no país, mas que não vão poder silenciá-los. É necessário politizar essa ideia para ajudar acabar com as ilusões democráticas e evitar que sejam recriadas. O que se está processando é um esgotamento das formas democrático-burguesas, que apenas podiam acobertar uma verdadeira ditadura civil.
O movimento com suas ações está se confrontando com a ditadura civil, que se apoia na Constituição de 1993, no Congresso, nos meios de comunicação e no aparato repressivo.
É necessário intervir nos movimentos, para ajudá-los a entender que a única possibilidade de democratizar o país é tomando o poder político, dissolvendo o Congresso e a Justiça burguesa. As organizações populares que estão à frente desse levante devem ter como perspectiva transformar-se no poder operário e camponês. Dirigir-se especialmente ao proletariado minero, para que intervenha ativamente nessa linha. E, neste sentido, é fundamental o trabalho para dividir e paralisar as forças repressivas, para eliminar seu poder de fogo. Esses são os ensinamentos dessas semanas de choques violentos com a repressão.
Somente um governo que nasce e se apoie nesta poderosa mobilização poderá expropriar as multinacionais, para acabar com o saque, expropriar os bancos e os grandes meios de produção. Essa é a única forma de garantir a revogação da Constituição, dos pactos internacionais que amarram o Peru, e redigir uma nova, que garanta que será o novo Estado que acabará com o poder das multinacionais, com a grande propriedade e com saque do país. A extraordinária riqueza mineira em cobre, prata, zinco, ouro, estanho etc., se encontra na mesma região andina onde se espalha a maior pobreza.
Não pode haver uma Constituinte democrática com os fuzis das forças repressivas apontando. Não pode haver uma Constituinte democrática enquanto o poder estiver nas mãos de um pequeno setor enriquecido, que é dono dos grandes meios de produção e de comunicação. Não pode haver uma Constituição democrática com este sistema de partidos que assegura a ditadura civil.
A burguesia encurralada, com as massas enfrentando seu Estado, seu Congresso, sua Justiça, sua repressão, pode antecipar as eleições, promover a renúncia de Boluarte e convocar uma Assembleia Constituinte para ganhar tempo, para desmobilizar, para dividir, para isolar os setores mais radicalizados, como aconteceu no Chile. Castillo-Boluarte chegaram ao governo com a defesa de uma nova Constituição, que reformasse o Estado, democratizasse a política e nacionalizasse setores chave da economia. O que é inviável nos marcos da decomposição capitalista, daí o seu fracasso.
Insistimos. É muito importante alertar sobre este perigo. Trata-se de ter claro em que condições se pode impor uma Assembleia Constituinte, que somente poderá realizar-se com o poder operário-camponês. Um setor da vanguarda, que protagonizou as enormes lutas de 2019 no Chile se iludiu com a Constituinte, se frustrou e desmoralizou. A Constituição Plurinacional da Bolívia também foi um engano para preservar o Estado burguês, tal como existia, com alguma maquiagem.
Os setores de esquerda que acompanharam a experiência de Castillo-Boluarte, com sua participação no governo ou com seu voto, desde o Peru e desde a América Latina, semearam a ilusão de que poderia haver transformações desde o governo, que se podia “mudar o modelo neoliberal”. Devem tirar as conclusões dessa experiência que se frustrou logo no início, e acabou com a vice-presidente se colocando a serviço da direita. Não há vias pacíficas, democráticas, institucionais e constitucionais, para resolver as reivindicações sociais, democráticas e políticas da maioria oprimida.
Hoje, a burguesia em plena crise se orienta pela resposta repressiva, endurecendo os ataques contra os manifestantes, impedindo que chegassem a Lima, mas, quanto tempo poderá suportar o país paralisado? Quanto tempo poderá se sustentar com um Congresso impopular e com a aberta intervenção das Forças Armadas?
A classe operária deve intervir, tem uma extraordinária responsabilidade histórica. Não pode deixar sozinhos os seus aliados naturais, os seus irmãos camponeses e indígenas. É preciso superar a desorganização, a baixa sindicalização, organizar-se desde as bases, aproveitando este momento de convulsão social. É uma oportunidade para acabar com o poder das oligarquias e das multinacionais. As massas estão vendo as enormes riquezas que se extraem para exclusivo benefício dos capitalistas. A crise política, que já leva vários anos, mostra a incapacidade da burguesia para sair de sua podridão, da corrupção e entreguismo.
A vanguarda mais consciente que intervém nestes movimentos deve ajudar a compreender que se trata da única saída, uma única luta, que deve ser consequente, contra a minoria que detém o poder, contra sua propriedade, para poder alcançar a vitória. Hoje, a luta tem um componente democrático determinante. É preciso trabalhar para processar a quebra das forças repressivas, que são compostas majoritariamente pelos povos originários e que podem ser ganhos para o movimento popular.
O CERQUI e o POR podem colocar suas posições com autoridade. Não chamaram a votar em Castillo em nenhum turno. Assinalaram que seu programa de conciliação com as instituições do Estado burguês seria impraticável e que acabaria impotente nas mãos da direita. Acabou rompendo com seu próprio partido. O CERQUI alertou, sem ambiguidades, que o movimento estaria diante de um governo burguês, não dos oprimidos, em junho de 2021. A classe operária tem de construir seu partido revolucionário, baseado na estratégia da revolução social, que instaure um governo operário-camponês, da maioria oprimida, para transformar a economia, colocando-a a serviço da maioria explorada.