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21 ago 2023
Por um tribunal popular
Toda vez que a intervenção da Polícia Militar resulta em chacina, a imprensa burguesa se vê obrigada a pedir investigação e punição aos “excessos”. Nessa mesma linha, seguem os partidos em manter a crença de que a solução virá de reformas no capitalismo e nas instituições do Estado. A bandeira de civilizar e humanizar a polícia é moeda corrente. Segundo os defensores das reformas, é possível educar e disciplinar a PM a não violar as leis e os preceitos dos direitos humanos. Não tem faltado, nesse sentido, esforços de governos e secretarias de segurança em busca da diminuição da letalidade policial. A adoção de câmaras acopladas nos homens encarregados da “lei, da ordem e da proteção à sociedade”, de forma a garantir o fim das chacinas, dos assassinatos individuais e excesso de violência tem sido apresentada como um meio de controle.
O Estado de São Paulo é o mais bem aparelhado. Por muitos anos, esteve sob o controle do PSDB, que é de centro-direita, se diz adepto dos direitos humanos e fez o que podia para elevar a PM a um patamar mais próximo do mandamento “não matarás em vão”. Não foi capaz de aplacar a mortandade provocada pelas ações policiais nos bairros e favelas. Mas, a esperança se depositava no índice que demonstrava a queda dos homicídios em geral e das mortes resultantes de “confrontos entre a polícia e os marginais”.
Uma fábula é destinada ao aparelhamento da PM. A “segurança pública” ocupa um significativo espaço no orçamento dos estados brasileiros. E a tendência não foi e não será de diminuição. Trata-se de uma grande soma aplicada em fins parasitários. E, certamente, movimenta as atividades econômicas dedicadas ao armamentismo, e aquelas que servem de auxiliares. O “combate ao crime” envolve uma importante cadeia de negócios. Uma vez que a criminalidade aumenta e tende a crescer, o aparato policial se agiganta e se complexifica. Não se pode desvincular o narcotráfico desses meandros. Não são os pequenos roubos e furtos diários que levam a PM a se tornar tão aparelhada e letal.
Na base da constituição de um Estado policial, como o que temos no Brasil, se encontra o fortalecimento do narcotráfico, e, interligado a essa poderosa atividade econômica, se fortalecem as quadrilhas como parte da divisão do trabalho no submundo econômico-social da sociedade capitalista. Tráfico de armas e contrabando são os que mais se ressaltam nas especialidades do crime. De conjunto, movimentam muitos recursos, que passam a ter importância para o Produto Interno Bruto (PIB). São tantas as formas de criar valores no subterrâneo da economia – o narcotráfico é reconhecido como um poderoso movimento econômico em escala internacional – que se encontram interpenetradas.
A burguesia não pode livrar o capitalismo da alta criminalidade, pela simples razão de que é um regime econômico baseado na produção de mercadoria. Há muito se constituiu uma fração burguesa narcotraficante, que como tal se acha entrelaçada à burguesia como classe exploradora e acumuladora de capital. Os seus reflexos e condicionamentos na política burguesa são visíveis.
Neste exato momento, ainda está quente o assassinato do candidato a presidência da República no Equador, e a responsabilidade tem sido atribuída ao narcotráfico. Analistas se referiram à existência de um Estado narcotraficante. Certo ou não, é incontestável a forte influência da fração burguesa narcotraficante na política que rege os poderes estatais.
No Brasil, o Rio de Janeiro é um dos estados da federação mais suscetível ao peso do narcotráfico e das milícias. O assassinato da vereadora do PSOL, Marielle Franco, está comprovado como responsabilidade das milícias. Foram importantes as denúncias e as pressões políticas para revelar os meandros do assassinato, ou pelo menos parte dos envolvidos na execução. A prisão deste ou aquele executor do crime, porém, não alterou em nada a ordem econômica, social e política das organizações criminosas. O narcotráfico, as milícias e os mais diversos tipos de quadrilhas se gestaram nas relações capitalistas de produção e distribuição, se tornando estruturais à sociedade de classes.
O Estado policial foi se configurando como disciplinador. No entanto, se converteu em parte do problema, e não em sua solução. O recrudescimento da violência policial contra as facções armadas ocorre em meio à população miserável e faminta. Os bairros operários pobres e as favelas abrigam a criminalidade, e são o campo em que se desenvolve uma forma guerra civil, onde a supremacia das forças armadas do Estado conta com todas as vantagens materiais, com a lei e com o acobertamento político.
Nessa guerra, o narcotráfico e quadrilhas afins incorporam homens, mulheres, adolescentes e mesmo crianças em suas fileiras. Impõem nas “comunidades” a sua lei econômica e o poder das armas. Baseado nessa relação, o Estado policial encontra sua justificativa, e procura apresentá-la à população oprimida como uma necessidade criada pela criminalidade, ocultando as relações capitalistas que as criam, as impulsionam e as mantêm em permanente conflito.
Estamos aqui neste ato contra a matança ocorrida no Guarujá entre 28 de julho a 1º de agosto, lembramos também que no dia 17 uma criança de cinco anos, Eloah da Silva, foi alveja por uma bala “perdida” em sua casa, quando brincava de pula-pula na cama. O fato é comum, já que esse tipo de ocorrência tem sido denunciado corriqueiramente pela imprensa. Poucos dias antes, Thiago Faustino, foi barbaramente assassinado pelo Batalhão de Choque da Cidade de Deus. Alvejado na garupa de uma moto foi derrubado com um tiro e já no chão recebeu mais quatro balaços. Tudo isso se tornou muito natural. Na Operação Escudo, da PM comandada pelo governador Tarcísio de Freitas, 18 foram mortos – uma das maiores chacinas do estado mais rico do País. O morticínio foi saudado pelas autoridades como resultado da defesa da “sociedade” contra o crime armado. O laudo necroscópico revelou que Felipe Vieira Nunes foi abatido por 7 tiros no tronco. Basta essa configuração para se ter claro que se tratou de fuzilamento. Ocorre que a câmara do atirador estava “descarregada”. Em outros casos, a desculpa foi de que não “houve acionamento do modo gravação alta qualidade”, de maneira que não se tem nitidez de imagem.
Tarcísio e as autoridades policiais burlam os acontecimentos descaradamente. Nada acontece, a não ser a elevação das rixas políticas locais, principalmente pela preparação para as eleições municipais. O presidente Lula fez de conta que não era com a União. Uma boa vizinhança com o governador bolsonarista do estado de São Paulo é conveniente para as alianças partidárias no parlamento. A recente chacina na Bahia, que já matou mais de 30 desde o final de julho, está sob a responsabilidade do PT e, portanto, mais diretamente do presidente Lula. A resposta do governador petista foi a mesma do bolsonarista: “eventuais excessos serão investigados”.
Segundo o Anuário de Segurança Pública, a Bahia ultrapassou o Rio de Janeiro em letalidade policial, concentrando 22% das mortes no País. As chacinas e mortes de crianças causam indignação na imprensa momentaneamente. Logo caem no leito da naturalização. Uma parte da população pobre, sem compreender as causas fundamentais da barbárie social, aprova essa via de combate à criminalidade.
Há uma camada da classe média que aplaude as chacinas, seguindo o preceito fascista de “bandido bom é bandido morto”. Está pela pena de morte informal e falsamente justificada como defesa da “sociedade”. Mas, há uma importante camada da maioria oprimida que sente na carne a violência policial, cujo componente racial não se tem como disfarçar, uma vez que a maioria dos presos que superlotam os presídios do país e a maioria dos assassinados pela política são de negros. A política burguesa, que se expressa por meio dos partidos, do judiciário, das igrejas e das organizações civis, se dividem em apoiar as ações letais da polícia, em disfarçar o apoio e a condenar.
É nesse marco que se levanta bandeiras como “fim da polícia militar”. Seria um grande feito democrático, mas nos marcos de reformas capitalistas não passa de palavras. Ou seja, descolada da luta pela revolução proletária não tem sentido real. Não há como desmontar o Estado policial, que se ergueu sobre a base da decomposição econômica do capitalismo e da consequente barbárie social. Essa forma e conteúdo de resposta ao narcotráfico e a toda sorte de atividade econômica impulsionada por uma fração burguesa, bem como a sua expressão social calcada no desemprego, no subemprego, na miséria e no desespero de milhares de famílias que se decompõem envoltas pela barbárie somente têm a função disciplinadora, que se realiza pela violência policial, judicial e carcerária. Está implantado o Estado policial no Brasil por razões estruturais. Distintamente seria se fossem transitórias, conjunturais.
A luta para pôr fim à guerra entre o crime organizado e as forças estatais – e assim acabar com a violência policial – está inteiramente nas mãos da classe operária e dos demais trabalhadores. Não passa de ilusão democrática e de oportunismo eleitoral a pretensão de humanizar o capitalismo, diminuindo as “desigualdades, incluindo os pobres, eliminando a miséria e extirpando os preconceitos raciais” etc., por meio de governos reformistas e de políticas públicas.
A volta de Lula ao poder reascendeu a chama do reformismo, encarnado por sua ala esquerda. Mas, nada puderam fazer no passado de forma a evitar o curso que tomou a economia sob os governos democratizantes após a ditadura militar e que levou à potenciação da barbárie social. A ditadura criou a polícia militar. E os governos eleitos que a substituíram não apenas mantiveram esse braço armado do Estado, como o fortaleceram. Sob o restabelecimento das instituições da democracia burguesa, permaneceram as tendências crescentes de projeção do Estado policial, nas condições de avanço da decomposição do capitalismo e da barbárie social. Essa questão do Estado policial deve ser encarnada pelo movimento operário, camponês e popular. Qualquer nuvem que se pressuponha democrática e que oculte o Estado policial servirá às mais distintas formas de barbárie, entre elas a fome de milhões.
A tarefa democrática de acabar com a violência policial, que recai sobre os oprimidos, não pode ser cumprida pela burguesia e por seu Estado. Esse pressuposto é decisivo para colocá-la nas mãos da classe operária e do conjunto dos explorados. A luta contra a violência policial tem como partida a luta por um programa próprio dos trabalhadores, que esteja em contraposição à brutal exploração do trabalho, ao infame desemprego, ao criminoso salário mínimo, à violenta destruição de velhas conquistas trabalhistas e sindicais etc. Tem como partida a defesa do trabalho da mulher e dos jovens; da igualdade real entre pretos e brancos. Essa luta permitirá criar organizações dos explorados, capazes de pôr em pé um tribunal popular assentado na classe operária. Esta manifestação poderá ter importância no combate à violência policial, se der mais um passo voltado à organização de um movimento de massa.
Uma bandeira que serve a esse objetivo é a de exigir da centrais sindicais que convoquem um Dia Nacional de Luta, com paralisações e bloqueios. O Partido Operário Revolucionário (POR) tem claro que o combate consequente à barbárie capitalista depende de os explorados avançarem em sua organização independente, com seus métodos de luta de classes e com a estratégia da revolução proletária, da conquista de um governo operário e camponês.