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21 dez 2024
Editorial do jornal Massas nº 730
O que esperar do novo governo na Síria?
Essa é a pergunta que tem feito as forças envolvidas na queda do regime de Bashar al-Assad. Os maiores interessados são os Estados Unidos, a Turquia e os países árabes adversários do Irã. Nessa lista, deve constar o Estado sionista de Israel. É consenso que os grandes perdedores foram a Rússia e o Irã. É dessa relação conflituosa que surge a pergunta sobre a perspectiva que se abre para a Síria, depois de 13 anos de guerra civil, cerca de 600 mil mortos, 6,8 milhões de refugiados, 13 milhões de deslocados e 90% da população lançados no precipício da miséria. Não é preciso descrever detalhadamente o caráter sanguinário da dinastia da família Assad, que governou o país por mais de meio século. A abertura das prisões e a escavação de covas coletivas retratam por si só que o governo feudal-burguês de Assad deixa uma história de longa opressão sobre as massas sírias e as nacionalidades que compõem o território.
É fundamental, porém, nesse reconhecimento da tragédia síria não perder de vista o caráter capitalista e de classe do Estado e sua expressão governamental encarnada pela dinastia Assad. Mais ainda, é imperativo demonstrar o quanto a Síria padeceu dos condicionamentos econômicos ditados pelas potências imperialistas, a começar pela ocupação francesa em 1920. A rebelião dos sírios contra a opressão nacional, em meados dessa década, apesar de esmagada pela França, esteve na base do movimento nacionalista de 1958 que iria levantar a bandeira de unificação territorial constituindo uma “República Árabe Unida”. A noção era de que a Síria e o Egito unificados estariam em melhores condições para garantir a independência perante as forças do imperialismo. Ainda que não tenham realizado esse objetivo, abriu caminho para a proposição da tese sobre a necessidade de uma “Federação das Repúblicas Árabes”. É nesse marco que a Síria lutou pela reunificação com o Líbano, chocando-se com a oposição francesa.
A trajetória política da Síria, desde a Primeira Guerra Mundial, o acordo Sykes-Picot de partilha e, portanto, da dissolução do Império Otomano, foi a de procurar a unificação como forma de enfrentar a nova dominação encarnada pela Inglaterra e França. No final da Segunda Guerra, com a nova partilha, a Síria se opôs terminantemente à decisão da ONU de estabelecer o Estado sionista de Israel na Palestina. Essa determinação colocou a Síria em um posto de destaque da resistência nacionalista à ofensiva norte-americana no Oriente Médio.
Foi importante a criação em 1947 do Partido Baath Árabe Socialista. O general Rafez al-Assad passou a dirigi-lo, depois de assumir o poder no final de 1970. Conservou a linha nacionalista de unificação de países árabes. A guerra entre o Iraque e o Irã, em 1980, se encarregou de minar as tendências unificadoras, que já vinham se debilitando com o fracasso do nacionalismo assumido pelo Egito, sob a direção de Gamal Abdel Nasser. Em sua base, se encontra a crescente divergência em torno à dominação de Israel sobre a Palestina e o agigantamento da influência dos Estados Unidos sobre os Estados e governos árabes, tendo em vista a crescente importância estratégica da economia petrolífera e da rota comercial marítima. Avultaram-se os choques da Síria com Israel em solo libanês.
Quando Bashar al-Assad, em junho de 2000, assumiu o lugar de seu pai no governo, a situação no Oriente Médio era explosiva. A Síria havia se negado a participar nos acordos de Oslo, contrapondo-se assim à OLP, e condenado a criação da Autoridade Palestina. O conflito da Síria com Israel havia assumido uma importante proporção com a guerra de 1967 e anexação das Colinas de Golã em 1981.
A invasão dos Estados Unidos ao Iraque em abril de 2003 foi rechaçada pela Síria. Os Estados Unidos impuseram-lhe sanções econômicas. Em 2011, a chamada “Primavera Árabe” estremeceu uma série de governos no norte da África e no Oriente Médio. Nas condições da guerra que arruinou o Iraque e dos movimentos de contestação às ditaduras, incendiaram-se os antagonismos nacionais e religiosos. A projeção do movimento nacionalista-religioso do Estado Islâmico, cuja organização foi impulsionada pela intervenção dos Estados Unidos no Iraque, refletiu amplamente no processo de crise econômica e política da Síria.
A guerra civil iniciada em 2011 transpareceu várias frações vinculadas ou não à jihad islâmica. Desencadeou-se em meio à campanha mundial do imperialismo norte-americano e aliados contra o que qualificaram de organizações terroristas. Não se tratou precisamente de uma guerra civil, uma vez que já estavam presentes forças externas à Síria. Chegou-se inclusive a uma grotesca aliança entre a Rússia, Estados Unidos e Turquia contra o Estado Islâmico e Al-Qaeda. O esmagamento da jihad no Iraque e na Síria permitiu um acordo provisório de cessar-fogo. O governo Assad, no entanto, se tornou refém do apoio da Rússia, enquanto que a Turquia, Catar e Estados Unidos sustentavam frações organizadas que iriam, finalmente, derrubar o governo em 8 de dezembro de 2024.
A investida da Organização do Levante pela Libertação da Síria (Hayat Tahir al-Sham/HTS) se gestou no quadro da intervenção do Estado sionista na Faixa de Gaza e no Líbano. Os ataques de Israel realizados no território sírio evidenciaram a impotência do governo Assad. Assim foi preparado o terreno de sua derrubada pela Turquia e aliados nesse objetivo. A Rússia envolvida na guerra da Ucrânia não se animou a reagir. O Irã, por sua vez, não tinha como se contrapor, premido que está por Israel e Estados Unidos.
Os Estados Unidos, Inglaterra e União Europeia montaram um cerco para comprometer o governo de Abu Mohammed al-Jolani, dirigente do HTS, com os objetivos estratégicos do imperialismo para o Oriente Médio. Trata-se de um governo que já nasceu dependente das forças externas. O que mostra a ausência de capacidade própria para reorganizar o país sobre novas bases econômicas e políticas decididas, amparadas e defendidas pelas massas sírias. Os bombardeios dos Estados Unidos e de Israel, que destruíram instalações militares do exército sírio e sua frota naval, bem como o fato de os sionistas invadirem o território sírio em Golã, são sinais de que o novo governo é incapaz de levantar o povo sírio pela independência e soberania nacionais.
A tarefa de libertar a Síria do intervencionismo externo e impor a sua soberania permanece em pé. O fim do governo de Assad não enfraqueceu as posições dos Estados Unidos e Israel no Oriente Médio. A propaganda de que a Síria será democratizada e que manterá sua unidade abrigando pacificamente as nacionalidades em conflito oculta os objetivos estratégicos do imperialismo de utilizá-la para consagrar a projeção do Estado sionista de Israel no Oriente Médio. O momento de euforia dos sírios logo passará. A dura realidade a ser enfrentada é a de organizar um movimento independente e revolucionário para expulsar os Estados Unidos e seus aliados, que os auxiliam a manter a dominação sobre as nações oprimidas e as massas exploradas.
Tudo indica que o agravamento dos antagonismos no Oriente Médio vai prosseguir sob a ofensiva do Estado de Israel sobre a Faixa de Gaza, Cisjordânia e Líbano. A ordem mundial do pós-guerra se decompõe. É o que evidencia a guerra na Ucrânia e os preparativos dos Estados Unidos para uma guerra com a China. Não há outro caminho para interromper a marcha da barbárie a não ser o da luta do proletariado guiado pelo programa da revolução social.